Medida inédita em São Paulo abre caminho para refletirmos sobre a importância de políticas públicas que promovam inclusão real para crianças autistas em ambientes escolares e sociais
Imagine uma escola onde o sinal não é um ruído alto e repentino, mas uma melodia suave para anunciar o início do recreio. Para muitas crianças, essa pode ser apenas uma mudança simples e que não significa nenhuma mudança prática, mas para crianças autistas, esse cuidado representa um ambiente escolar mais acolhedor, menos estressante e verdadeiramente inclusivo.
Foi justamente esse o objetivo de medida de inclusão aprovada em São Paulo: a substituição do sinal sonoro do recreio por alternativas menos agressivas para a audição, como músicas suaves. A mudança tem o intuito de reduzir o impacto negativo que o barulho estridente causa em crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e em estudantes com outras deficiências sensoriais.
Essa ação, apesar de simples na prática, é profundamente significativa: mostra que pequenas adaptações podem gerar grandes avanços na inclusão escolar.
O impacto do sinal adaptado
O barulho repentino do sinal escolar é, muitas vezes, um gatilho de crises para crianças dentro do espectro autista. Isso ocorre porque muitas delas têm uma hipersensibilidade auditiva.
A hipersensibilidade auditiva é uma das manifestações do que é nomeado como diferenças no processamento sensorial: o sistema nervoso da criança reage de maneira mais intensa a estímulos sonoros que para outras pessoas seriam toleráveis ou até mesmo imperceptíveis.
De maneira técnica, isso ocorre porque o limiar de percepção e a capacidade de se acostumar ao estímulo sonoro estão alterados – um toque, uma sirene ou um sinal escolar podem parecer exageradamente altos, imprevisíveis e, por isso, provocar desconforto intenso. Na prática, a reação de cada criança pode variar: alguns tapam os ouvidos, outros choram, têm crises de ansiedade, revolta ou uma queda na atenção e no rendimento escolar naquele momento.
Ao substituir o sinal sonoro por música, é possível criar uma transição mais suave entre as atividades, garantindo segurança emocional, redução da ansiedade e melhores condições de aprendizado.
É importante destacar que essa é apenas uma das formas de hipersensibilidade sensorial observadas em crianças no espectro. Outras manifestações comuns incluem:
- Tato: aversão a texturas, dificuldade com etiquetas e uniformes, reação a toques inesperados – ou ao contrário, com a busca constante pelo toque;
- Visão: intolerância a luzes fortes, luzes fluorescentes, ou a estímulos visuais muito movimentados que distraem e estressam;
- Olfato e paladar: sensibilidade a odores (que podem provocar náuseas) e seletividade alimentar acentuada, com a recusa de muitos alimentos por sua textura ou cheiro;
- Propriocepção e vestibular: a dificuldade ou a busca por movimentos – alguns evitam balanços e giros, outros procuram constantemente por movimentos e compressões;
- Interocepção: alteração na percepção de sensações internas (como a fome, sede, dor), o que pode dificultar a comunicação sobre necessidades básicas.
Nem todas as crianças autistas têm hipersensibilidade auditiva, pois o o TEA é heterogêneo. Algumas apresentam hipossensibilidade, precisando de estímulos maiores para perceber, outras alternam respostas ao longo do tempo.
Por isso, qualquer adaptação deve ser introduzida após uma avaliação individualizada que deve ser realizada por profissionais como terapeutas ocupacionais e psicopedagogos, sempre em diálogo com a família.
Adaptações práticas para a escola (além do sinal musical)
Para além de mudar o sinal do recreio, as escolas podem adotar medidas simples e efetivas para incluir crianças autistas:
- Disponibilizar áreas de acolhimento ou salas silenciosas para momentos em que a criança precise se recompor de algum agente causador de estresse;
- Oferecer opções de proteção auditiva (fones ou abafadores) para alunos que sejam bem tolerantes a esses objetos;
- Usar sinais visuais previsíveis (luzes suaves, painéis ou cartões) que antecipem as transições entre diferente momentos e reduzam o elemento surpresa que gera desconforto;
- Criar rotinas mais previsíveis e avisos antecipados (“faltam 5 minutos para o recreio”), diminuindo a imprevisibilidade;
- Ajustar iluminação, reduzir ruídos e organizar as mobílias e objetos para minimizar os estímulos excessivos;
- Treinar a equipe escolar para reconhecer sinais de sobrecarga sensorial e agir com técnicas de acolhimento e acalmar a criança gradualmente.
Essas medidas reforçam que a inclusão não depende de uma única solução, mas de um conjunto de ações adaptadas à singularidade de cada criança, e que pequenas mudanças no ambiente cotidiano podem prevenir crises, melhorar o bem-estar e aumentar as oportunidades de aprendizagem e socialização.
Por que políticas públicas são essenciais?
Pequenas iniciativas, como a mudança do sinal, demonstram que a inclusão só acontece quando existe planejamento coletivo e regulamentação política. Quando medidas de acessibilidade são determinadas por lei, elas deixam de ser escolhas isoladas de algumas escolas e passam a se tornar um direito assegurado a todas as crianças autistas, em todos os espaços.
Além disso, políticas públicas oferecem o respaldo necessário para que as instituições de ensino tenham os recursos necessários para aplicar tais adaptações, desde a formação de professores até a estrutura física adequada.
Outras medidas de inclusão que fazem a diferença
O sinal adaptado é apenas um exemplo do que pode ser feito para garantir a verdadeira inclusão. Para além disso, é preciso pensar em um conjunto de estratégias que podem ser aplicadas tanto em escolas quanto em outros ambientes.
1. Capacitação de professores e equipes pedagógicas: formações específicas sobre o assunto ajudam educadores a compreender o autismo, reconhecer sinais e oferecer suporte adequado. Mais do que fornecer informações a respeito, é necessário preparar os profissionais para lidar com crises, desenvolver atividades adaptadas e promover a interação social de forma respeitosa;
2. Flexibilização alimentar: uma medida já aprovada em São Paulo foi a permissão para que alunos autistas levem seu próprio lanche, considerando restrições alimentares e seletividade alimentar, que são comuns no TEA. Esse cuidado garante o bem-estar físico e emocional das crianças;
3. Ambientes sensoriais adaptados: reduzir estímulos sonoros e visuais excessivos, criar espaços de acolhimento e permitir intervalos durante o dia na escola são estratégias eficazes para prevenir crises e melhorar a convivência;
4. Inclusão em esportes, cultura e lazer: projetos que promovam a participação de crianças autistas em atividades culturais, esportivas e de lazer fortalecem sua capacidade de socialização, aumentam a autoconfiança, estimula habilidades motoras e reduzem as barreiras de preconceito;
5. Acessibilidade na saúde e transporte: o acesso a terapias, consultas médicas especializadas e transporte adaptado são atitudes que garantem a inclusão social plena, para além da inclusão escolar
Leis e direitos que já existem
Felizmente, o Brasil já vem avançando em políticas públicas de inclusão. A Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012) reconhece a pessoa com autismo como pessoa com deficiência, garantindo acesso à saúde, educação e trabalho.
Outras regulamentações recentes, como a lei que assegura nutrição adequada e terapia nutricional a pessoas com TEA, mostram como o tema tem ganhado espaço na agenda pública. Ainda assim, a distância entre a lei e a prática cotidiana é grande, e por isso é fundamental o monitoramento e a cobrança da sociedade civil em relação ao cumprimento dessas leis.
Inclusão que transforma
A adaptação do sinal de recreio em São Paulo é uma vitória simbólica e prática, que mostra que a inclusão não é apenas um ideal, mas uma construção coletiva feita de medidas concretas que mudam realidades.
Quando o recreio começa com música em vez de sirene, é a prova de que ouvir as necessidades das crianças é o primeiro passo para construir uma sociedade mais justa e inclusiva – e um futuro muito mais feliz!

